"Já ouvi: ‘Se você atira deitado, por que precisa de preparo físico?’" | Entrevista com James Lowry Neto 09/09/2020 - 13:18

James Lowry Neto é técnico da seleção brasileira paralímpica de tiro esportivo, coordenada pelo Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), e diretor técnico do Comitê Olímpico do Brasil (COB), nas provas de carabina e pistola Olímpicas. Foi campeão brasileiro convencional em 1982, 2012, 2013 e 2015. Devido a sua atuação como técnico, já visitou 27 países acompanhando vários atletas em competições. Também é bolsista do Geração Olímpica desde 2012 - ano em que o programa passou a ofertar bolsas também a técnicos - e sempre ajudou na divulgação do projeto. Atualmente, treina um atleta convocado para os Jogos Paralímpicos de Tóquio, o paulista Alexandre Galgani.

 

Sétimo convidado das lives do esporte, nesta entrevista contou um pouco sobre sua modalidade e algumas histórias divertidas dos seus últimos 15 anos de profissão. Lembrando que as lives acontecem às 17h nas terças e quintas-feiras, com transmissão pelo Instagram e pelo Facebook. Para conferir a reportagem ao vivo na íntegra, acesse nossa página no Instagram

 

Como o tiro esportivo surgiu em sua vida?
Meu avô praticava tiro ao prato, isso em 1930. Ele foi um dos sócios fundadores do Clube Paranaense de Tiro, em Curitiba. Quando eu tinha oito anos comecei a acompanhar meu pai e meu avô caçando; com 12 eu ganhei minha primeira arma para competição. Competi até os 21 anos, mas nessa época eu comecei a pensar em casar e trabalhar. Larguei o tiro porque não tinha mais rendimento para fazer carreira como atleta. Vendi todo o meu material porque sabia que, se estivesse com o equipamento em casa, não teria conseguido parar. Retornei em 2005 e precisei comprar todo o equipamento de volta. 
 

Como aconteceu essa transição do atleta para o técnico?
Olha, foi entre 2004 e 2005. O Carlos Garletti, atleta do Geração Olímpica, chegou para mim e disse que estava treinando para conquistar uma vaga em Pequim. Eu já tinha feito alguns cursos técnicos e treinava a equipe paranaense, então quando ele me pediu ajuda, eu aceitei. Todo final de semana ele vinha para Curitiba e a gente treinava. O Carlos foi o primeiro atleta paralímpico na categoria do tiro esportivo a se classificar para Pequim. Depois dessa conquista, o CPB me chamou para treinar a seleção, e aqui estou. 
 

Podemos dizer que o tiro é uma modalidade de alto custo? 
Olha, vou te responder com um exemplo: das modalidades olímpicas, a mais barata é o ar comprimido ou carabina. Absolutamente tudo é importado, porque não temos material nacional. Uma arma de ar comprimido hoje, de fabricação alemã, custa em torno de 20 mil reais. Se for uma carabina de bala, de fabricação suíça, chega a 30 mil reais. E perceba que estamos só falando da arma. Uma latinha de 500 munições custa 80 reais, mas um atleta de ponta dá 200 tiros por dia. Ou seja, ele consome uma latinha a cada dois dias de treinamento. O vestuário custa em torno de 10 mil reais e tem validade de cerca de 2 anos. Claro que o atleta iniciante opta por uma roupa mais básica, uma arma usada, mas ainda assim é um esporte caro. 
 

É fácil para o atleta de tiro esportivo transitar com as armas e as munições? 
Diferente do cidadão comum, que é controlado pela Polícia Federal, o atleta de tiro esportivo é controlado pelo exército. O cidadão comum precisa ter porte de arma e só consegue comprar com uma justificativa muito forte, já o atleta tem um número maior de armas e munições que pode comprar. Se não me engano, gira em torno de 50 mil munições anuais, enquanto o cidadão comum só consegue adquirir 100. Já a questão da transição do equipamento é controlada pelo guia do tráfico. Ele que nos autoriza a transportar a arma em todo território nacional, com a munição separada do case da arma. A aeronave só pode transportar cinco quilos por passageiro, ou seja, até mil balas. Isso nos dá uma margem de cinco dias de treinamento.  
 

Qual a importância do treinamento físico para a modalidade? 
Já escutei brincadeiras ‘Se você atira deitado, por que precisa de preparo físico?’. Mas a verdade é que seu batimento cardíaco precisa abaixar para fazer um tiro perfeito. O atleta de alto nível consegue chegar em 60 batimentos por segundo na hora do disparo. Se der um tiro ruim, o coração pode chegar em 160 por minuto, em questão de um segundo. E, para o segundo disparo, ele precisa que o coração retorne para 60 batimentos por segundo. Se não tiver um bom condicionamento físico ele não consegue controlar o batimento, além do desgaste físico que vem depois. O atleta sai do estande de tiro e vai direto para o hotel, de tão exausto. Sem falar na concentração, tanto no dia da prova, como no treinando. Um atleta chega a atirar cerca de 180 vezes em 5 horas.
 

Quais as diferenças da competição Olímpica e Paralímpica?  
É praticamente tudo igual. Mesma arma, mesmo equipamento. Por exemplo, na carabina o atleta olímpico atira em 3 posições: de joelho, deitado, e em pé. No Paralímpico temos as mesmas posições. Ai você me pergunta ‘Como um cadeirante atira em pé?’. Eu respondo: existe a adaptação. No olímpico o atleta fica com o joelho no chão e o cotovelo apoiado no joelho, no paralímpico ele apoia um dos joelhos sobre a cadeira. No olímpico o atleta deita sobre o solo, no paralímpico ele se apoia em uma mesa. Ou seja, é a mesma competição. 
 

Como percebe o talento na sua modalidade? E a aptidão para cada tipo de arma? 
Eu vejo que é questão de adaptação, mas antes o atleta precisa definir com qual arma quer competir. Quando retornei eu fiquei dois anos treinando com a pistola, sem grande destaque. Decidi voltar para a carabina e em um ano estava em terceiro lugar no ranking brasileiro. Eu tenho vocação para a carabina, eu me encaixo melhor nela. Na pistola eu poderia ser um bom atleta, mas levaria muito tempo e eu treinaria bem mais. Quando treino um atleta novo eu faço ele experimentar as três. Se encaixar na carabina, então está comigo. Se encaixar em outra, bom também. Tem que seguir a que funcionar melhor, e por isso experimentar é importante. 
 

Quais foram as viagens que mais te impressionaram? 
As que me marcaram foram as que tivemos um tempo para dias de lazer, o que é muito difícil de conseguir. Pessoal fala ‘Nossa, 15 dias nas Austrália, o que você conheceu?’. A resposta é nada. Eu sou técnico e coordenador, acordo às 6h da manhã e encontro meus atletas no estande de tiro. Lá, fico até o último atleta sair, geralmente quando está anoitecendo. Morto de cansaço, volto para o hotel e tomo um banho. Começo a preencher os relatórios e, quando vejo, são 10h da noite e meu dia acabou. Mas uma vez competimos nos Estados Unidos, em Fort Benning, onde os fuzileiros navais treinam. O local é gigantesco, uma coisa monstra. Tive lazer e um pouco de tempo livre naquela vez, então consegui passear, comer em um restaurante legal e ir ao shopping. 
 

Nas viagens, não somente o clima que muda, mas a cultura também impacta a competição. Já passou por alguns perrengues?  

Olha, vou contar três histórias: 

A primeira é sobre fuso horário. Para passar bem por ele, principalmente quando viajamos para a Ásia, eu gosto de tomar um remédio que me faz dormir a noite toda. Em uma dessas competições nós fizemos uma escala na Austrália e eu comprei na farmácia o comprimido. Assim que tomei e entrei no avião, eu capotei. Depois, dormi na cadeira de espera por mais de 3 horas seguidas. Não almocei, não jantei e nem tomei café, só dormi. Cheguei no hotel completamente grogue e derrubado. Sem entender, fui conferir e descobri o que estava acontecendo. A moça na farmácia me vendeu o dobro da quantidade que eu costumava tomar. 

Outra vez na Tailândia pedimos uma marmita que seria entregue no estande de tiro. Quando abrimos, encontramos arroz, um ovo preto fedido e legumes envoltos em uma gosma esquisita. Pensei ‘Deus, não posso experimentar isso’. Conclusão: passei no mercado e comprei um cup noodles [macarrão instantâneo de micro-ondas]. Lá eles gostam muito de chá, então coloquei água quente e preparei o macarrão. Quando comecei a comer percebi como era apimentado. Eu gosto de comidas picantes, mas lá o nível da picância é outro.

E por fim, eu estava na Coreia do Sul. Estávamos em um quarteto e fomos jantar em um restaurante que estava quase fechando. Só tinha a gente lá, e nenhum dos funcionários falava outra língua senão coreano. O cardápio também não tinha uma foto sequer, então não podíamos apontar e fazer mímicas. Sem wifi, como fazer o pedido? Isso mesmo, não fizemos. Levantamos os quatro, passamos no mercado e compramos pão, queijo e presunto. Jantamos no hotel. 
 

Parece que tem uma história de uma garrafa e você. Conta ela pra gente? 
Eu estava em Londres quando recebemos meia dúzia de garrafas comemorativas das Paralimpíadas e Olimpíadas. Cada país receberia uma quantidade específica. Mas poxa, eu estava ali ajudando de boa vontade, claro que uma garrafa deveria ser minha né ? Então fui lá e peguei a garrafa. Hoje está aqui em casa, guardada. Um segredo de tanto tempo, ninguém do Comitê sabe, mas acho que agora vão descobrir [risos].

 

Foto: Comitê Paralímpico Brasileiro.